Aprendendo
a interpretar a simbologia das brincadeiras das crianças autistas
Como toda e qualquer criança, as crianças
autistas também brincam. Mas do jeito delas, muitas vezes maneira nada
convencionais. A maioria delas, inclusive, não raro dá preferência
A objetos da casa, de uso do dia a dia para
usarem-nos como se fossem brinquedos e brincar com eles ao invés de brinquedos
propriamente ditos, mas não sempre, claro. Alguns brinquedos são muito
apreciados por elas, como carrinhos de ferro(miniaturas) ou dinossauros de
plástico em miniatura tb.
Por que grande parte das crianças autistas
preferem brincar com controles remotos, canetas, abajures, fios, antenas,
ventiladores, etc,é muito fácil de entender: autistas tem uma imaginação e uma
criatividade enormes, e precisam coloca-las para fora, pôr em prática o que
imaginam, e estes objetos dão margem ‘a imaginar naves espaciais, canhões
laser,etc. Já os brinquedos convencionais não dão margem ‘a criatividade, eles
são o que são e não podem ser imaginados como se fossem outros objetos.
No caso dos carrinhos e dinossauros, os autistas
que gostam de brincar com eles geralmente já tinham uma preferência forte, uma
fase de interesse intenso por estes assuntos.
Mas hoje o assunto será focado em um outro
aspecto muito interessante deste assunto:
As brincadeiras infantis em geral tem uma
simbologia psicanalítica, uma vez que são constituídas de um “faz-de-conta”
altamente lúdico, em que uma história, com seus personagens, é vivida.
Isto é particularmente verdadeiro para crianças
autistas, que levam este conceito bem mais além, ao transformar objetos que naõ são brinquedos em brinquedos
propriamente ditos, usando sua imaginação, além de vivenciar as estórias com
mais profundidade e as estórias serem muito mais complexas e detalhadas. São aventuras muito mais
lógicas que emocionais, ‘a primeira vista, mas que, ao serem examinadas mais a
fundo, percebe-se um claro fundo emocional nelas, e não apenas seu Mundo
Interno de Fantasia está ali retratado (o que em si já não é pouco) ; mas toda
a percepção de sua vida e da família, sua vivência com colegas, vizinhos,
profissionais, parentada, estão ali, e situações traumáticas, ou que o
magoaram, o fizeram se sentir incompreendido, injustiçado, suas insatisfações e
sua angústia com elas, suas revoltas, etc estão todas ali retratadas
simbolicamente nestas brincadeiras.
Por isto é tão importante observar atentamente (de
preferência sem que ele perceba que esteja sendo observado) estas brincadeiras,
o teor das histórias, os atos dos personagens, a personalidade dos personagens,
atitudes diante de situações. Etc.
Então hoje vamos aqui aprender como interpretar
estes sinais, esta simbologia e seus significados, para que possamos entender melhor
a criança autista, o que será uma grande e preciosa ferramenta para descobrir
por que ela age como ela age, e o que a levou a ter o comportamento que ela
tem. Inclusive, observando as brincadeiras infantis das crianças desde
pequenas, podemos prevenir que ela tenha um comportamento nervoso e revoltado
no futuro.
O exemplo que utilizaremos hoje será o do
carrinho de ferro, pois dá margem a muitas analogias e interpretações, e é
muito comum.
Comecemos então pela brincadeira usando um carro
comum e um carro de polícia.
O carro de Polícia , no entender da criança,
simboliza os Pais, os profissionais ou os colegas, enfim, pessoas que lidam com
ele: aqueles que o controlam (inclusive sua velocidade, ou seja sua ansiedade),
dão limites, dão ordens ou parecem hierarquicamente superiores a ele.
Perseguições do carro de Polícia ao outro carro podem mostrar como a criança vê
seu relacionamento com seus pais , terapeutas, colegas, etc, e mostra suas
insatisfações em relação a eles. Se há perseguições furiosas, em que o outro
carro sempre consegue escapar do carro de polícia, é um sinal de um desejo
inconsciente da criança de não ter mais broncas ou castigos (especialmente os
físicos)expresso na brincadeira. Em cenas em que a Polícia alcança o carro
fugitivo, as brigas entre o policial e o perseguido podem refletir ou mesmo
reproduzir os conflitos das crianças autistas com os pais, terapeutas, colegas,
vizinhos, parentada, etc. Se ela for verbal, ela poderá se utilizar de diálogo
entre os dois personagens, e colocar na boca do policial, por exemplo, as falas
do pai e da mãe e mostrar como realmente se sente em relação a eles e explicar
o que não conseguiu explicar a eles na vida real. Ou de outras pessoas que
lidam com ele no dia a dia.
É que muitos autistas, numa discussão com os
pais, devido ‘a presença deles, que o autista muitas vezes vê como inibidora,
não consegue expressar o que realmente sente ou como realmente vê a situação,
ou ainda se auto- reprime, com receio de uma reação agressiva. Mas sozinho, sem
ninguém olhando, ele falará, em pensamento, ou as vezes em voz alta, sua
explicação completa, e se expressará de forma muito mais completa, e
inteligível suas explicações e seus sentimentos, do que se os pais estivessem
na frente dele. E também, como o pensamento, o raciocínio autista, é muito complexo e sofisticado, fica difícil colocar
ele inteiro em poucas palavras e definitivamente síntese e resumos não são o
forte dos autistas, não que não sejamos capazes ou não saibamos fazê-lo, mas
via de regra detestamos ter de fazer isto, não é algo que façamos de bom grado.
Então muitas vezes o autista não consegue, por
atos e gestos (quando ainda não verbal) ou verbalmente, se expressar de forma
clara e inteligível aos pais ou a outras pessoas, por ter de estar improvisando(algo
que nós autistas geralmente odiamos ter de fazer) e/ou porque está na frente de
outras pessoas, o que pode ocasionar auto repressão ou auto- contenção de
discurso ou sentimentos, mas sozinho, sem ninguém olhando, ele se expressa
muito bem para si mesmo de modo perfeito, o que mostra que sim, ele é
perfeitamente capaz de se expressar, mas o que tem de ser trabalhado nele é
evitar que ele identifique nas outras pessoas um fator de inibição, auto
repressão e auto- contenção, ou seja, temos de reforçar nele a auto confiança e
auto- segurança, além da auto- estima.
Estas inseguranças, faltas de confiança e
auto-estima costumam ser retratadas nas histórias que ele conta a si mesmo nas
brincadeiras, e não raro, as causas disto podem ali serem reveladas: eventos
traumáticos, sentimentos de rejeição, de segregação, incompreensão ou
injustiça.
Mas, quando o autista faz o papel do policial nas
brincadeiras e persegue o outro carro, os papéis se invertem: seu Ditador
Interior se revela plenamente, e revela também o que na verdade ele gostaria de
dizer para as pessoas, como ele gostaria de agir com elas e como gostaria de
ser. Também pode revelar suas revoltas,
suas raivas e os motivos e causas delas.
A brincadeira de estacionar o carrinho entre
outros dois, demonstra a vontade do Autista de ter seu lugar na sociedade e ter
um espaço nela onde se encaixar. Dificuldades de conseguir estacionar sem bater
mostram, ou melhor, refletem as dificuldades desta inserção, ou mesmo sua
exclusão pela sociedade(deixando, por exemplo um espaço pequeno demais para o
carro caber e não conseguindo achar vagas.
Mas tentar estacionar batendo na frente e atrás
mostra sua revolta com esta exclusão e sua vontade vingativa de tentar sua
inclusão ‘a força.
Brincadeiras de ficar trombando os muitos
carrinhos entre si e os fazer cair da mesa ou da cama, onde está sendo feita a
brincadeira, mostra bem esta revolta, em que os carrinhos que batem e expulsam
o que cai representam colegas batendo nele, humilhando-o, rejeitando-o ,
colocando-o para fora de seus círculos, em última análise, da sociedade.
Como a camaou
a mesa representa o topo de uma montanha ou platô na brincadeira, e a
queda hipotética seria alta, interpreta-se que o autista julgue que ser
colocado para fora da sociedade seja uma espécie de morte social, ou seja, ele
não vê no momento maneiras de conseguir se incluir.
Brincadeiras onde o carrinho sobe com dificuldade
em algum objeto, por exemplo, um travesseiro, mostra que ele está sentindo
dificuldades em superar alguma coisa ou ser compreendido. Capotagens, quedas,
batidas, durante estas subidas e descidas do carrinho simbolizam desistências,
desesperanças, falta de apoio que ele sente de alguém. Outro carrinho que
empurra ou puxa o outro , atolado, mostra o desejo do autista de ser ajudado em
alguma coisa que ele não está conseguindo fazer e mostra que ele gostaria de
ser ajudado.
Histórias em que o motorista de um dos carrinhos,
se mostra para os outros, contando vantagens, mostram uma necessidade de auto
afirmação, um complexo de superioridade tentando disfarçar um complexo de
inferioridade.
Já nos casos de corridas de carrinhos,a
interpretação é mais óbvia: a competitividade, a vontade de competir e ganhar,
e de certa forma, a vontade de ser vingar dos que praticam bullying ou o rejeitam, expressando essa “vingança”
colocando a vitória como prova de valor que força as outras pessoas, mesmo
contra a vontade, a incluí-lo e aceita-lo.
Mas, e se ele perde estas corridas?
Aí já é sinal de que sua auto estima, auto confiança
e auto segurança estão extremamente baixas e o complexo de inferioridade
cresceu a níveis perigosos.
Indo agora para os “concursos de trombadas” em
que os carrinhos são jogados aleatoriamente uns contra os outros, mostra suas
revoltas e insatisfações num nível
críticos, em que o stress está tão alto que pode provocar um surto,
especialmente se a criança ficar trombando os carrinhos com fúria e brincar com
raiva, nervosa, estressada. Se ela os joga uns em cima dos outros sorrindo e se
divertindo, aí ela expressa sua vontade de se vingar de quem ela considera que
a maltrata, machuca, humilha, não o compreende ou o acusa injustamente.
Bom, eu poderia falar muito mais sobre isto, mas
aí viraria um livro...rsss
O importante mesmo é frisar a importância da observação
criteriosa e psicanalítica das brincadeiras das crianças autistas.
Uma boa maneira de fazer isto, caso os pais
tenham condições para tal, é filmar a criança brincando sem que ela perceba que
está sendo filmada e mostrar ‘a (ao) terapeuta, ou, se preferir, assistir o
vídeo e tirar suas próprias conclusões. Mas é sempre importante o 9ª0 terapeuta
ter acesso a estes vídeos também, de qualquer modo.
Revelações importantíssimas podem ser obtidas por
meio destas observações, para o acompanhamento clínico da criança autista, uma
forma de psicanálise que funciona mesmo para crianças ainda não verbais, pois
se baseia em gestos e atos que contam uma história, que pode parecer fictícia,
mas que na verdade reflete a história de vida real da criança, do ponto de
vista dela, que nunca deve ser descartado, nem subestimado !
Cristiano Camargo
Nenhum comentário:
Postar um comentário