sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Aprendendo a interpretar a simbologia das brincadeiras das crianças autistas


Aprendendo a interpretar a simbologia das brincadeiras das crianças autistas

 

 

Como toda e qualquer criança, as crianças autistas também brincam. Mas do jeito delas, muitas vezes maneira nada convencionais. A maioria delas, inclusive, não raro dá preferência

A objetos da casa, de uso do dia a dia para usarem-nos como se fossem brinquedos e brincar com eles ao invés de brinquedos propriamente ditos, mas não sempre, claro. Alguns brinquedos são muito apreciados por elas, como carrinhos de ferro(miniaturas) ou dinossauros de plástico em miniatura tb.

Por que grande parte das crianças autistas preferem brincar com controles remotos, canetas, abajures, fios, antenas, ventiladores, etc,é muito fácil de entender: autistas tem uma imaginação e uma criatividade enormes, e precisam coloca-las para fora, pôr em prática o que imaginam, e estes objetos dão margem ‘a imaginar naves espaciais, canhões laser,etc. Já os brinquedos convencionais não dão margem ‘a criatividade, eles são o que são e não podem ser imaginados como se fossem outros objetos.

No caso dos carrinhos e dinossauros, os autistas que gostam de brincar com eles geralmente já tinham uma preferência forte, uma fase de interesse intenso por estes assuntos.

Mas hoje o assunto será focado em um outro aspecto muito interessante deste assunto:

As brincadeiras infantis em geral tem uma simbologia psicanalítica, uma vez que são constituídas de um “faz-de-conta” altamente lúdico, em que uma história, com seus personagens, é vivida.

Isto é particularmente verdadeiro para crianças autistas, que levam este conceito bem mais além, ao transformar objetos  que naõ são brinquedos em brinquedos propriamente ditos, usando sua imaginação, além de vivenciar as estórias com mais profundidade e as estórias serem muito mais complexas  e detalhadas. São aventuras muito mais lógicas que emocionais, ‘a primeira vista, mas que, ao serem examinadas mais a fundo, percebe-se um claro fundo emocional nelas, e não apenas seu Mundo Interno de Fantasia está ali retratado (o que em si já não é pouco) ; mas toda a percepção de sua vida e da família, sua vivência com colegas, vizinhos, profissionais, parentada, estão ali, e situações traumáticas, ou que o magoaram, o fizeram se sentir incompreendido, injustiçado, suas insatisfações e sua angústia com elas, suas revoltas, etc estão todas ali retratadas simbolicamente nestas brincadeiras.

Por isto é tão importante observar atentamente (de preferência sem que ele perceba que esteja sendo observado) estas brincadeiras, o teor das histórias, os atos dos personagens, a personalidade dos personagens, atitudes diante de situações. Etc.

Então hoje vamos aqui aprender como interpretar estes sinais, esta simbologia e seus significados, para que possamos entender melhor a criança autista, o que será uma grande e preciosa ferramenta para descobrir por que ela age como ela age, e o que a levou a ter o comportamento que ela tem. Inclusive, observando as brincadeiras infantis das crianças desde pequenas, podemos prevenir que ela tenha um comportamento nervoso e revoltado no futuro.

O exemplo que utilizaremos hoje será o do carrinho de ferro, pois dá margem a muitas analogias e interpretações, e é muito comum.

Comecemos então pela brincadeira usando um carro comum e um carro de polícia.

O carro de Polícia , no entender da criança, simboliza os Pais, os profissionais ou os colegas, enfim, pessoas que lidam com ele: aqueles que o controlam (inclusive sua velocidade, ou seja sua ansiedade), dão limites, dão ordens ou parecem hierarquicamente superiores a ele. Perseguições do carro de Polícia ao outro carro podem mostrar como a criança vê seu relacionamento com seus pais , terapeutas, colegas, etc, e mostra suas insatisfações em relação a eles. Se há perseguições furiosas, em que o outro carro sempre consegue escapar do carro de polícia, é um sinal de um desejo inconsciente da criança de não ter mais broncas ou castigos (especialmente os físicos)expresso na brincadeira. Em cenas em que a Polícia alcança o carro fugitivo, as brigas entre o policial e o perseguido podem refletir ou mesmo reproduzir os conflitos das crianças autistas com os pais, terapeutas, colegas, vizinhos, parentada, etc. Se ela for verbal, ela poderá se utilizar de diálogo entre os dois personagens, e colocar na boca do policial, por exemplo, as falas do pai e da mãe e mostrar como realmente se sente em relação a eles e explicar o que não conseguiu explicar a eles na vida real. Ou de outras pessoas que lidam com ele no dia a dia.

É que muitos autistas, numa discussão com os pais, devido ‘a presença deles, que o autista muitas vezes vê como inibidora, não consegue expressar o que realmente sente ou como realmente vê a situação, ou ainda se auto- reprime, com receio de uma reação agressiva. Mas sozinho, sem ninguém olhando, ele falará, em pensamento, ou as vezes em voz alta, sua explicação completa, e se expressará de forma muito mais completa, e inteligível suas explicações e seus sentimentos, do que se os pais estivessem na frente dele. E também, como o pensamento, o raciocínio autista, é muito  complexo e sofisticado, fica difícil colocar ele inteiro em poucas palavras e definitivamente síntese e resumos não são o forte dos autistas, não que não sejamos capazes ou não saibamos fazê-lo, mas via de regra detestamos ter de fazer isto, não é algo que façamos de bom grado.

Então muitas vezes o autista não consegue, por atos e gestos (quando ainda não verbal) ou verbalmente, se expressar de forma clara e inteligível aos pais ou a outras pessoas, por ter de estar improvisando(algo que nós autistas geralmente odiamos ter de fazer) e/ou porque está na frente de outras pessoas, o que pode ocasionar auto repressão ou auto- contenção de discurso ou sentimentos, mas sozinho, sem ninguém olhando, ele se expressa muito bem para si mesmo de modo perfeito, o que mostra que sim, ele é perfeitamente capaz de se expressar, mas o que tem de ser trabalhado nele é evitar que ele identifique nas outras pessoas um fator de inibição, auto repressão e auto- contenção, ou seja, temos de reforçar nele a auto confiança e auto- segurança, além da auto- estima.

Estas inseguranças, faltas de confiança e auto-estima costumam ser retratadas nas histórias que ele conta a si mesmo nas brincadeiras, e não raro, as causas disto podem ali serem reveladas: eventos traumáticos, sentimentos de rejeição, de segregação, incompreensão ou injustiça.

Mas, quando o autista faz o papel do policial nas brincadeiras e persegue o outro carro, os papéis se invertem: seu Ditador Interior se revela plenamente, e revela também o que na verdade ele gostaria de dizer para as pessoas, como ele gostaria de agir com elas e como gostaria de ser. Também  pode revelar suas revoltas, suas raivas e os motivos e causas delas.

A brincadeira de estacionar o carrinho entre outros dois, demonstra a vontade do Autista de ter seu lugar na sociedade e ter um espaço nela onde se encaixar. Dificuldades de conseguir estacionar sem bater mostram, ou melhor, refletem as dificuldades desta inserção, ou mesmo sua exclusão pela sociedade(deixando, por exemplo um espaço pequeno demais para o carro caber e não conseguindo achar vagas.

Mas tentar estacionar batendo na frente e atrás mostra sua revolta com esta exclusão e sua vontade vingativa de tentar sua inclusão ‘a força.

Brincadeiras de ficar trombando os muitos carrinhos entre si e os fazer cair da mesa ou da cama, onde está sendo feita a brincadeira, mostra bem esta revolta, em que os carrinhos que batem e expulsam o que cai representam colegas batendo nele, humilhando-o, rejeitando-o , colocando-o para fora de seus círculos, em última análise, da sociedade.

Como a camaou  a mesa representa o topo de uma montanha ou platô na brincadeira, e a queda hipotética seria alta, interpreta-se que o autista julgue que ser colocado para fora da sociedade seja uma espécie de morte social, ou seja, ele não vê no momento maneiras de conseguir se incluir.

Brincadeiras onde o carrinho sobe com dificuldade em algum objeto, por exemplo, um travesseiro, mostra que ele está sentindo dificuldades em superar alguma coisa ou ser compreendido. Capotagens, quedas, batidas, durante estas subidas e descidas do carrinho simbolizam desistências, desesperanças, falta de apoio que ele sente de alguém. Outro carrinho que empurra ou puxa o outro , atolado, mostra o desejo do autista de ser ajudado em alguma coisa que ele não está conseguindo fazer e mostra que ele gostaria de ser ajudado.

Histórias em que o motorista de um dos carrinhos, se mostra para os outros, contando vantagens, mostram uma necessidade de auto afirmação, um complexo de superioridade tentando disfarçar um complexo de inferioridade.

Já nos casos de corridas de carrinhos,a interpretação é mais óbvia: a competitividade, a vontade de competir e ganhar, e de certa forma, a vontade de ser vingar dos que praticam bullying  ou o rejeitam, expressando essa “vingança” colocando a vitória como prova de valor que força as outras pessoas, mesmo contra a vontade, a incluí-lo e aceita-lo.

Mas, e se ele perde estas corridas?

Aí já é sinal de que sua auto estima, auto confiança e auto segurança estão extremamente baixas e o complexo de inferioridade cresceu a níveis perigosos.

Indo agora para os “concursos de trombadas” em que os carrinhos são jogados aleatoriamente uns contra os outros, mostra suas revoltas e insatisfações  num nível críticos, em que o stress está tão alto que pode provocar um surto, especialmente se a criança ficar trombando os carrinhos com fúria e brincar com raiva, nervosa, estressada. Se ela os joga uns em cima dos outros sorrindo e se divertindo, aí ela expressa sua vontade de se vingar de quem ela considera que a maltrata, machuca, humilha, não o compreende ou o acusa injustamente.

Bom, eu poderia falar muito mais sobre isto, mas aí viraria um livro...rsss

O importante mesmo é frisar a importância da observação criteriosa e psicanalítica das brincadeiras das crianças autistas.

Uma boa maneira de fazer isto, caso os pais tenham condições para tal, é filmar a criança brincando sem que ela perceba que está sendo filmada e mostrar ‘a (ao) terapeuta, ou, se preferir, assistir o vídeo e tirar suas próprias conclusões. Mas é sempre importante o 9ª0 terapeuta ter acesso a estes vídeos também, de qualquer modo.

Revelações importantíssimas podem ser obtidas por meio destas observações, para o acompanhamento clínico da criança autista, uma forma de psicanálise que funciona mesmo para crianças ainda não verbais, pois se baseia em gestos e atos que contam uma história, que pode parecer fictícia, mas que na verdade reflete a história de vida real da criança, do ponto de vista dela, que nunca deve ser descartado, nem subestimado !

 

 

Cristiano Camargo

 

 

 

 

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