sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Asperger como Professor


 

Anno Dominni:1989 D.C.

Eu estava iniciando meu curso de Bacharelado de Biologia em uma Universidade particular em Ribeirão Preto, quando recebi a incumbência de fazer um estágio como Professor de Ciências numa Escola Estadual num bairro humilde e com alunos idem. Seriam seis meses de um desafio inusitado e inesquecível, como nunca dantes!

O rapaz de 27 anos que estacionava e saía de seu velho Dodge Polara 1976 branco em frente ‘a velha escola não tinha nem idéia dos desafios que tinha pela frente.Suas lembranças escolares como aluno eram de um tempo muito anterior, onde o estudo era mais comportado e contido e o Professor era mais valorizado.Ainda assim, estava auto confiante, idealista que era, cheio de planos mirabolantes na cabeça.

Quando adentrei aquela velha sala de aulas, tudo aquilo veio abaixo em meio a um choque tremendo de Realidade:uma gritaria infernal, caderias e carteiras voando para todos os lados, sem falar de gizes e clipes, e bolinhas de papel, numa verdadeira guerra civil, e uma professora de meia idade já caminhando para a selinidade, muito obesa, berrando como se fosse daqueles porcos que são colocados no gancho na parede do matadouro e tem seus ventres abertos e estripados enquanto ainda vivos, tentando desesperadamente fazer os alunos estudarem e chamar a atenção deles.

Ela me recebeu com um olhar desconfiado, tipo: “-este aí não  vai conseguir de jeito nenhum ,vai desistir rapidinho...”

Sim, a descrença e o cepticismo estava estampados fortemente na cara dela e também no tom de voz.Ela era amiga da minha mãe(também professora, hoje aposentada)então me conhecia um pouco.

O que eu esperava?Na Universidade, tinham-me dito que no estágio, o estagiário ficaria no fundo da classe , anotando o jeito que a professora ensinava e que passaria o estágio inteiro assim.

Realidade:

Professora:

-Cristiano, seja bemvindo ao meu inferninho !A classe é sua, vou embora e daqui por diante você se vira sozinho!

E ela pegou as coisas dela, sem falar nada para os alunos, com um sorriso malicioso nos lábios e foi embora.Nunca mais voltou durante meu estágio.

Pronto !Era como se eu tivesse sido trancado numa caverna sem saída, cheia de tigres dentes de sabre ferozes...

Observei os alunos:não era uma classe uniforme:devia ter cerca de uns vinte e cinco alunos, boa parte garotas, de diferentes idades e estaturas corporais,de todas as etnias.

A classe, entretanto, nem se deu conta da minha presença,fazendo de conta que eu nem existia, igualzinho faziam com a Professora anterior.

A Revoada de cadeiras, carteiras, clipes, bolas de papel e gizes continuou do mesmo jeito, com alunos altos batendo nos baixinhos, garotas conversando alto entre si, vários alunos e alunas saindo da classe sem permissão e sem nem pedir ou falar nada,bagunça total!

Agora eu entendia por que aquela professora chamava a classe de “meu inferninho”...era mesmo o próprio inferno para qualquer professora aquela quinta série !

Nas duas primeiras semanas tentei desesperadamente dar aulas, sem nunca ter dado uma na vida, berrando com os alunos, sem conseguir nada.Uma situação deprimente e frustrante , que me tirava o sono...

Uma bela noite tive uma idéia, e no dia seguinte, cheguei no colégio, entrei na sala de aula, e sem dar a mínima bola para os alunos,comecei a desenhar na lousa.Desenhei , nas duas extremidades da lousa, duas naves espaciais, tipo as que se vê na série Jornada nas Estrelas(Star Trek).

À medida que eu desenhava, os desenhos foram chamando a atenção e despertando a curiosidade dos alunos, a começar pelas meninas.

Diante de perguntas, tipo: “-O que você está fazendo, fessor?”, eu parei e disse que se eles se acalmassem e parassem a bagunça homérica, eu explicaria.

O rumor logo se espalhou pela classe e os líderes da bagunça logo ordenaram a atenção.

Classe apaziguada e razoávelmente silenciosa, comecei  a explicar:

- Eu desenhei duas naves espaciais, uma em cada canto.A da esquerda é a nossa, e a da direita é a nave inimiga.Eu vou dar um questionário, e a cada pergunta que vocês acertarem,será um tiro que a nossa nave vai dar na nave inimiga, e  cada pergunta que errarem, será um tiro que a nave inimiga  dá na nossa nave , e irei  marcando os pontos debaixo de cada nave à medida que o jogo continua!

A criançada gostou da brincadeira,e  eu exigia respostas espontâneas e criativas dos alunos, nunca as decoradas do livro ou caderno.No começo eles tiveram bastante dificuldade, mas depois se excediam.

Como eu notei que o velho  e surrado livro didático estava cheio de erros, eu estimulava os alunos a achar os erros nos livros e ler os livros de forma crítica, criticando-os.

Na medida do possível eu dava aulas práticas.Cheguei a construir um belo navio de lego e uma bacia cheia de água para demonstrar o princípio de Arquimedes  e explicar porque um navio era capaz de flutuar no mar.

Logo eu estava dispensando totalmente o livro didático e preparava minhas aulas em casa, no meu velho computador Apple IIe ,imprimia para todo mundo  e distribuía para todos eles.

Mas haviam outras atitudes minhas que me diferenciavam dos Professores tradicionais: Eu não gostava de ficar enfurnado na sala dos Professores, ouvindo um monte de fofocas, maldizeres e abobrinhas, e sim no pátio do Recreio, com meus alunos, e conversava com eles e elas como amigo,algumas vezes como “pai”, e lhes dava conselhos, escutava suas mágoas, frustrações,traumas, dramas e alegrias, me condoia de seus sofrimentos, procurando consolá-los, e vibrava com suas poucas vitórias na vida...todos os dias !

Claro que os demais professores e a diretora não apenas estranhavam aquilo, como fofocavm,me chamando de arrogante pelas costas, mas eles tinha era inveja, porque meus alunos progrediam rápido e suas notas também, e não só na minha matéria. A auto estima e auto confiança deles crescia dia a dia, e todos os dias, ao estacionar o carro, havia um alegre e barulhento “comitê de recepção”,dos alunos e das alunas(especialmente as garotas, que me adoravam) ,me recebendo com festa, ansiosos pela aula!

Os demais professores me olhavam atravessado, com desconfiança e inveja, ante minha popularidade, mas as notas dos meus alunos desmentiam toda a falação, eram indiscutíveis!

A coisa chegou a tal ponto que outros alunos de outras classes virava e mexia vinham para assistir a minha aula...

E eu sentia um imenso prazer de rever aquela saudosa turminha todos os dias, com aulas alegres e bem humoradas, cheias de brincadeiras, sem cópias na lousa, só explicando em voz alta e com interpretação de texto.

Era comum eu recitar uma parte do meu texto e perguntar aos alunos o que tinham entendido daquilo, pedir para explicarem em detalhes e dizer o porquê de sua linha de raciocínio. Meu objetivo era fazer com que entendesse, não que decorassem.  Não mais havia bagunça, nem evasão da sala de aula.

Claro que nos primeiros dias eu tive muitas vezes de enfrentar alunos mais altos que eu (e muscularmente mais fortes que eu inclusive) para defender os alunos mais fracos do bullying, interpondo-me entre eles,e não raro levava os agressores para a Diretoria .

Mas com o tempo, fui conquistando o respeito de todos e adquiri autoridade, tratando a todos com carinho, humanidade e consideração, procurando explorar ao máximo a inteligência e criatividade deles, e quantas vezes não me surpreendi...no final , eles não eram maus alunos, eles apenas precisavam de atenção e carinho,pois estavam abandonados à própria sorte antes, alguém que lhes dessem limites comportamentais, ensinasse as regras sociais e acreditasse em seus sonhos e potenciais, tentasse fazê-los crescer e aparecer como pessoas humanas sensíveis e belas de coração e alma, alguém que fosse além do simples ensinar...

Claro, tudo isto era na verdade atribuições dos pais deles, mas estes garotos e garotas viviam um mundo perigoso , cheio de criminalidade, com  pais muitas vezes bêbados e/ou drogados, um mundo violento e cruel, e não tinham esta base em casa...

Então, eis que pois, muitas vezes um professor tem  dar um pouco de pai ou mãe , de si, de seu coração, para o aluno ir para a frente...é uma doação !

Enfim, o semestre estava acabando, chegaram as provas finais e para a surpresa da escola, que não acreditou em mim até o fim, e tentou me desestimular te tentar me fazer voltar aos velhos métodos mediante até ameaças veladas e outras mais explícitas, todos os meus alunos tiraram notas azuis e passaram de ano !

O último dia de aula foi muito triste e ao fim da aula ,muitos alunos choravam e me abraçaram...foi difícil me despedir e ir embora dali !

Um mês depois, eu passeava pelo Shopping com a minha mãe,e passou por mim um grupinho e ex- alunas , que me reconheceram na hora.

Elas vieram correndo me abraçar e me encheram de beijinhos no rosto, e me disseram que estavam com saudades de mim, das minhas aulas, me perguntavam se eu iria voltar no ano seguinte, com seus olhinhos cheios de esperança e lágrimas...

O que dizer para aquelas meninas, que eu queria bem como se fossem minhas filhas?

Foi de cortar o coração em fatias ter de explicar que isto não seria posível,e que o estágio tinha acabado, e acabamos todos chorando abraçados e foi duro me despedir novamente...

Hoje penso, onde e como estarão estes alunos e estas alunas, o que foi feito deles, que adultos se tornaram?

Foi sem dúvidas a experiência de vida mais gratificante e linda da minha vida, e a mais inesquecível também!

Se Aspergers podem ser bons professores?E por que não?Porque não?...
 
Cristiano Camargo

 

 

 

 

 

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